"The successor to politics will be propaganda. Propaganda, not in the sense of a message or ideology, but as the impact of the whole technology of the times."
Marshal McLuhan

domingo

Em memória de Borges

Celebra-se por agora o centenário (sobre o nascimento) de Jorge Luís Borges, um dos mais cativantes autores deste século. Borges, como poucos, criou o fantástico, citou clássicos que nunca existiram, dividiu-se a si mesmo em personagens, recenseou livros que nunca escreveu como se eles de facto existissem e fundou uma biblioteca dinâmica e infinita, protótipo e arquétipo da actual World Wide Web. Borges foi, em suma, um dos grandes criadores do virtual.
Ao contrário de muitos outros escritores meritórios, Borges não fundou a sua obra num universo absolutamente imaginário -- externo ao real, invisível -- antes abriu fendas no mundo, como se através delas pudéssemos -- por um ilusionismo dos sentidos e do pensamento -- ser invadidos por uma "realidade paralela" (como o é o ciberespaço). Se é verdade que o seu tio Edwin Arnett o instruiu, ainda criança, no idealismo de Berkeley na Casa Vermelha de Lomas, então talvez muita da obra de Borges estará explicada. Mas com ele, nunca é de fiar.
Vem isto a propósito de uma das mais deliciosas citações de Borges, a da antiga enciclopédia chinesa intitulada Entreposto Celestial do Conhecimento Benevolente, que em certo ponto classifica desta forma os vários animais deste mundo:

a) aqueles que pertencem ao Imperador,
b) embalsamados,
c) os treinados,
d) leitões,
e) sereias,
f) os fabulosos,
g) cães abandonados
h) aqueles que são incluídos nesta classificação,
i) os inumeráveis,
j) aqueles desenhados com um fino pincel de pêlo de camelo,
k) outros,
l) aqueles que acabaram de quebrar um vaso de flores,
m) aqueles que à distância se parecem com moscas.

Borges parece brincar connosco. Mas por detrás do risível, encontra-se uma ideia surpreendente: por mais absurda que nos pareça esta classificação, ela não andará longe dos complexos mecanismos de processamento da mente humana. Talvez nos tenhamos habituado a olhar para as directorias do computador e, algo apressadamente, extraído daí uma imagem lógica de como o nosso cérebro lida com a informação. Como uma estante de livros: na de cima, os ensaios; abaixo, os romances de ficção-científica; mais abaixo ainda, os romances; na última (a mais alta) os álbuns de banda-desenhada. Mas não é bem assim. Não existe, no cérebro, um local reservado às receitas de cozinha e outro aos desgostos de amor.
O estudo das afasias e da memória relacionada com as lesões cerebrais tem trazido a lume histórias de empalidecer Borges: desde uma pessoa que conseguia escrever algo que lhe ditassem mas era incapaz de ler ou reconhecer uma única letra (no entanto conseguia descrevê-las visualmente, pelo que nada de anormal se passava com a visão); até outra que reconhecia qualquer objecto animado mas era incapaz de nomear qualquer ser vivo, incluindo comida; outra que reconhecia tudo o que é comestível excepto vegetais; ou ainda uma afasia mais comum, que a uns permite utilizar substantivos concretos mas lhes veda o acesso a conceitos abstractos e a outros exactamente o contrário. Tudo isto, porque determinada e minúscula zona do cérebro se encontra corrompida.
Kevin Kelly, no seu livro "Out of Control", explicava que "Existem mais ideias/experiências do que modos de combinar neurónios no cérebro. A memória deve, então, organizar-se de modo a acomodar mais pensamentos do que aqueles que tem espaço para armazenar. Não pode possuir uma prateleira para cada pensamento do passado, nem um espaço reservado para cada pensamento potencial do futuro".
Este complexo sistema de gestão de informação que é a mente humana (incomensuravelmente mais eficaz e incompreensível que os sistemas de gestão de informação dos computadores) funciona de modo não-linear e não redundante. Os sistemas de classificação que utiliza serão, provavelmente, ainda mais rebuscados do que o do Entreposto Celestial do Conhecimento Benevolente. Porém, funciona. E bem. Enquanto o meu computador não for capaz do mesmo, então "ele não será inteligente, apenas pensará que o é". E é falso que um milhão de macacos, teclando durante um milhão de anos, seriam capazes de escrever a obra de Shakespeare. Na verdade, não seriam sequer capazes de reproduzir uma página de Borges.