"The successor to politics will be propaganda. Propaganda, not in the sense of a message or ideology, but as the impact of the whole technology of the times."
Marshal McLuhan

sábado

O 1º Ciclo Virtuoso: Tempo

“Things have their shape in time, not space alone. Some marbles blocks have statues within them, embedded in their future”
Alan Moore, in Watchmen


Todos nós sabemos o que é o tempo. Explicá-lo, porém, é coisa mais difícil. Como dizia Santo Agostinho: “O que é o tempo? Se não me perguntam, sei. Se me perguntam, desconheço”.

Diz-se que é a quarta coordenada: acrescentado às três coordenadas do espaço, ditará com rigor o “onde estamos?”. Mas desde sempre que a pergunta anterior a esta é o “quem somos?”. E aqui o tempo e o espaço são muito diferentes.

Nietzsche desaprovava que se falasse de Goethe e de Schiller na mesma frase. Quem isso nos recorda é Borges, para acrescentar que ele mesmo pensa ser “igualmente irrespetuoso hablar del espacio y del tiempo” [1].

Na verdade, argumenta Borges, podemos prescindir – no nosso pensamento, na nossa mente – do espaço, mas não do tempo.

Borges segue a sua dissertação resumindo as sensações ao ouvido para nos dizer que “é absurdo supor que a música em si necessita de instrumentos” [2]. Também o tempo não precisa de instrumentos ou medidas. Recorremos a esses artifícios ou convenções de modo a comunicar o tempo, mas ele em si existe para além disso.

Mas levemos a experiência de Borges um pouco mais longe: excluamos ainda o ouvido. Imagine-se numa câmara de privação sensorial. Não há luz. Não há qualquer ruído. O tacto é uma sensação de flutuação num líquido morno. Deixou de haver lugar. Mas há uma última coisa que esta privação jamais nos pode tirar: a experiência do tempo, por muito alterada ou alucinada que ela seja (parece que esta é a própria intenção da câmara de privação).

O tempo -- e a memória -- é a coisa última que resta a uma mente sem percepção do “real”; é a derradeira emoção que constrói a nossa própria consciência. O tempo é absoluto? Talvez não...

Newton e a física mecanicista que perdurou até finais do séc. XIX acreditavam que o tempo era absoluto. Que era igual aqui e em toda a parte e que decorria continuamente. Tal era a visão do mundo e do seu funcionamento, pois o tempo é uma constante necessária às equações da mecânica. Contudo, a teoria da relatividade e, um pouco mais tarde, a física quântica, vieram desviar o tempo do conceito da constante. Ele já não é igual em todo o lado, e quando dizemos ‘todo o lado’ já não nos referimos à esquerda e à direita, mas em profundidade, ao nível subatómico ou macroscópico.

Na verdade, a constante foi também pulverizada por outra via: no dia a dia do século XX, por força dos novos media e da era digital, a cognição adquiriu a velocidade da luz. Na ordem de grandeza dos nanosegundos, a instantaneidade destemporaliza os processos, tornando-os – aparentemente – simultâneos:

“In compunicational milieus, information processing begins to transpire so quickly (on the order of nanoseconds) that it is said to seem essentially timeless; thus communications networks have quickly developed to the point where information processing has become indistinguishable from the act of communication itself. The medium and, by extension, the various complex acts of mediation, for all intents and purposes, have become invisible.”

Branden Hookway[3]

À velocidade da luz tudo é simultâneo e holístico. Por força da electricidade, a distância – que se pode contar por quilómetros ou por minutos, medidas de espaço e tempo, recordo – esvanece-se. Como panfletariamente anunciou Tom Peters: “Distance is Dead. Yikes!”[4]

À velocidade da luz, o tempo destruiu o espaço e criou envolvimento em profundidade, de caminho fritando-nos o cérebro. O homem explodiu e o universo implodiu. O paradigma que define esse ponto onde se interseccionam esses dois movimentos contraditórios, está ainda por definir claramente. De certo modo, Chardin chamou-lhe a Noosfera; Jung, o inconsciente colectivo; Lévy, a inteligência colectiva. Mas o termo mais consensual é: o Ciberespaço.

“Hoje, após mais de um século de tecnologia eléctrica, expandimos o nosso sistema nervoso central num abraço global, abolindo simultaneamente o espaço e o tempo, no que diz respeito ao planeta. Rapidamente, avançamos para a fase final das extensões do homem -- a simulação tecnológica da consciência, quando o processo criativo do conhecimento será colectivamente e corporativamente alargado ao todo da sociedade humana, tal como já expandimos os nossos sentidos e os nossos nervos através dos vários media”.

Marshall McLuhan

A metáfora da Aldeia Global -- “As electrically contracted, the globe is no more than a village” -- preconizada por Marshall McLuhan, veio servir de modelo teórico para a primeira fundação do Ciberespaço, por excelência o “local” onde acontecem os processos de comunicação e mediação e se inaugura com a maior e mais complexa rede de telecomunicações, a telefónica. Cyberspace: the place you are when you're on the telephone”, definiu John Perry Barlow.

A aldeia é, obviamente, uma mera imagem literária. A “contracção” que se realiza por força da electricidade reduz o espaço a um ponto imaginário: aquele em que reside a nossa consciência ou, melhor, o ponto em que as consciências se tocam e trocam, um consciente colectivo. E se é da ordem da consciência, deixa pois de ser um espaço para se tornar, como disse William Gibson, uma “alucinação consensual”.[5] Ou seja, o Ciberespaço é um tempo, uma experiência, e não um espaço.

A imediaticidade não se circunscreve apenas aos processos da informação mas também, é necessário não esquecer, à resolução da experiência.

O Ciberespaço existe em todo o lado e ao mesmo tempo, mas essa é só a forma mais fácil de colocar a questão (o real também está em toda a parte embora não ao mesmo tempo). Deveríamos antes dizer: no Ciberespaço existimos em todo o lado e ao mesmo tempo. Existimos, apenas e também, em tempo real. O Ciberespaço não é um espectáculo – como a História – mas uma experiência. Deriva também daí a desintegração do tempo: a incapacidade de uma construção linear, substituída pela simultaneidade. Nesse sentido, não só nos encontramos esvaziados de distância, de causalidade e de interpretação, mas mesmerizados pela experiência. Depois do transe de Narciso, o coma profundo: sem história, sem olhar, sem linguagem.

Bernard Comrie[6] distingue duas formas de tempo no que se refere à linguagem: o aspecto (aspect) e o particípio (tense). O particípio designa o tempo em que as situações relatadas acontecem: no passado, no presente ou no futuro. Fazem a distinção entre o tempo em que as situações ocorrem e o momento em que são formuladas na fala. Por sua vez, o aspecto distingue entre o perfectivo (perfective) -- uma situação vista desde “fora”, como terminada -- e o imperfeito (imperfective) -- uma situação vista desde “dentro”, como ainda a decorrer. A narrativa, tal como a História, é assim uma representação no aspecto perfectivo; por seu lado, a interactividade pertence ao aspecto imperfeito.

Isto sugere que “os aspectos perfectivo e imperfeito, e por analogia a narrativa linear e a simulação interactiva, correspondem a dois modos fundamentalmente diferentes de olhares” (Cameron).

McLuhan falava da “simulação tecnológica da consciência” como um momento de ascese, o nanosegundo em que o Homem se reúne ao Ciberespaço -- “A mensagem não é constituída pelas palavras, mas pelos efeitos na pessoa. É a conversão”[7].

A simulação, ao contrário da História, designa as condições para os acontecimentos, e não os acontecimentos em si. Um bom exemplo são os simuladores de corridas: a pista, a velocidade, o carro, são as condições, mas não o acontecimento. O tempo é: tempo real, agora, sem construção verbal de passado ou futuro. Não existe escatologia; o resultado -- ou o final -- está em aberto; mas também não existe linguagem, porque o Ciberespaço é uma experiência partilhada e não transmitida. É esta a profunda diferença entre os olhares.

Sem linguagem e sem olhar, que resta do homem? Antes de entrarmos em pânico – ou me lerem como apocalíptico – que fique claro que há sempre novas linguagens e novos olhares prontos a serem descobertos (ou deveria dizer: inventados?)

J.C. Hertz afirmou[8] que “os videojogos são o treino perfeito para a vida na América fin-de-siècle, onde a existência diária exige a habilidade de gerir dezasseis formas de informação que nos são disparadas pelos telefones, televisores, faxes, pagers, PDAs, sistemas de mensagens de voz, correio postal, correio electrónico e a Internet”.

E continua: “Os nascidos com o joystick possuem vantagens incorporadas (…) os miúdos criados com videojogos não são deficitários de atenção, moralmente aberrantes, pequenos zumbis iletrados que massacram gente em massa após demasiado Mortal Kombat. Eles são, simplesmente, aclimatados a um mundo que cada vez mais se assemelha a uma experiência de arcada”.

O tempo Universal aproxima-se vertiginosamente do, sincroniza-se com, o tempo do Ciberespaço. Por ora, talvez isto não seja muito óbvio. Mas a progressiva aceleração da cultura, da economia, etc., levar-nos-á a um momento em que a vida será representada e interpretada no seu aspecto imperfeito. Como uma “experiência de arcada”, tal como nos diz Hertz ou, para sermos mais precisos, como uma “simulação tecnológica da consciência”. E então deixará de haver desculpas: o mundo será aquilo que quereremos que ele seja. Finalmente.



[1] Borges, Jorge Luis, Borges Oral (Madrid: Alianza Editorial, 1998).

[2] Id.

[3] Hookway, Branden, Pandemonium - The Rise of Predatory Locales in the Postwar World (Nova Iorque, Princeton Architectural Press, 1999)

[4] Peters, Tom, The Circle of Innovation - You Can’t Shrink Your Way to Greatness (Nova Iorque, Vintage, 1999)

[5] Leary, Timothy, High Tech High Life -- William Gibson & Timothy Leary In Conversation (Berkeley, Mondo 2000 nº7 Outono 1989)

[6] Comrie, Bernard, Language Universals and Linguistic Typology (Chicago: University of Chicago Press, 1982)

[7] McLuhan, M., Pierre Babin, Era Electrónica Um Novo Homem Um Cristão Diferente (Braga: Multinova, 1979)

[8] Hertz, J.C., Joystick Nation: How Computers Ate Our Quarters, Won Our Hearts and Rewired Our Brains (Boston: Little, Brown & Company, 1997)