"The successor to politics will be propaganda. Propaganda, not in the sense of a message or ideology, but as the impact of the whole technology of the times."
Marshal McLuhan

terça-feira

O tostão global

A primeira vez que ouvi falar do "tostão global" estava eu à conversa com Roy Ascott, no Art Futura de Madrid, já há uns anos (a entrevista está aqui publicada). A certa altura, questionei-o sobre o fosso que poderia vir a existir entre os países com diferentes indíces de conectividade, um outro eufemismo para definir o fosso entre países ricos e países pobres.
E responde Ascott: "O demótico em si mesmo garantirá que o mundo todo ficará telematicamente ligado. Se olhar para o transistor -- o transistor de rádio -- duvido que haja algum local do mundo onde ele não esteja presente. Sabemos porquê: é um instrumento político poderosíssimo, etc. O demótico vê o mundo do mesmo modo. Tudo pelo que espera neste momento é pelo dinheiro digital. Uma vez que a criptação seja absolutamente segura não haja dúvidas que "eles" -- eles sendo as grandes corporações, o mercado em todas as suas formas -- alcançarão toda a gente. Sabe como é o mercado, se alguém lhe disser: "se fizeres isto ou aquilo receberás um tostão" você responde "um tostão? vá-se lixar!". Mas o mercado nunca diz isso. Se é um tostão, é um tostão em todo o mundo. Não interessa quão pobre é a gente, basta olhar para Nova Iorque -- há ali gente pobre para além do que é credível -- o mercado ainda assim está lá, o McDonalds está lá. Por isso a telemática também lá estará".

Na altura, a referência à marca de hamburguesas passou mais ou menos despercebida. Mas vejam: não será o negócio do franchising uma das primeiras aproximações ao mercado da Aldeia Global? O produto é formatado para um consumidor global. Vende-se a mesma coisa em todo o lado. Ganha-se, enfim, um tostão em toda a parte.

A margem de lucro numa hamburguesa é praticamente residual. As bebidas -- já que não vendem vinhos de marca -- também não permitem margens dilatadas já que refrescos e cervejas têm o seu preço muito condicionado pela concorrência. Que raio de negócio onde se ganha tão pouco! Será?
Claro que não: enquanto um bom restaurante – daqueles cuja margem nas garrafas de vinho é enorme -- serve algumas dezenas de refeições por dia, o Burger King serve 1404 clientes por dia e por restaurante. Ou, em todo o mundo, 14 milhões de clientes por dia!
Com uma cadeia de 10 118 restaurantes instalada num total de 53 países, o Burger King está ainda a alguma distância da McDonalds: 24 800 restaurantes, instalados em 114 países, que resultaram em receitas de 36 milhares de milhões de dólares o ano passado. Embora sem número oficiais, basta fazer umas contas de cabeça para estimar que a rede McDonalds serve cerca de 30 milhões de clientes por dia. E é aqui que reside o segredo.

A margem de lucro do negócio das hamburguesas mede-se aos centavos e aos tostões, não aos escudos. Mas este tostão é um "tostão global". Igual no McDonalds de Montecarlo, junto à exposição permanente dos automóveis do princípe Rainier (vários Ferrari novinhos em folha) ou nos McDonalds a juzante das favelas do Rio de Janeiro (muitos «carochas» a cair de podre). O serviço é basicamente o mesmo, o produto também, e o seu preço – embora relativamente condicionado pelas condições locais – produz a mesma mais-valia.

O tostão global das hamburguesas, tal como o tostão das colas e de outros negócios globais, é uma das mais acutilantes metáforas do novo paradigma económico. Alguns dos mais carismáticos exemplos da economia telemática – as livrarias Amazon e Barnes and Noble, a discoteca CDnow, a agência de viagens GoFly – fazem a mesma coisa que as hamburguerias: vendem em todo o mundo, com uma margem de lucro diminuta. O número de clientes satisfeitos (suponho) em todo o mundo dá a dimensão e a massa crítica suficiente para o seu negócio prosperar. E quanto maior é essa massa crítica, menores são os preços e melhores e mais variados os serviços prestados (há mesmo um novo modelo de vendas que faz baixar o preço do produto proporcionalmente ao número de encomendas). Constrói-se assim um ciclo virtuoso que irá perdurar durante muitos anos.

Mas existem, claro, diferenças entre estes modelos. A Amazon, a CDnow ou a GoFly podem descer ainda mais os seus preços porque os custos de operação não incluiem uma mão-de-obra vasta nem espaços fisícos, sejam pontos de venda ou de atendimento. Os restaurantes da cadeia Burger King empregam, mundialmente, cerca de 300 mil pessoas. Adicione-se os custos de mais de dez mil pontos de venda. Imaginem agora quanto a Amazon, a Barnes and Noble, a CDnow e a GoFly poupam por operar num mercado virtualizado!

Note-se que as hamburguesas franchisadas são um negócio de meio século. As lojas virtuais, essas, são meras debutantes num mercado que dá agora os seus primeiros passos. Custa muito imaginar porque sobem tanto as suas acções na bolsa?

"The better-gets-cheaper magic", escreveu Kevin Kelly. E a varinha mágica que permite esse milagre é a ambição do tostão global. Tal como nas hamburguerias, as margens de lucro do negócio das telecomunicações tendem hoje para o zero (nos mercados liberalizados, claro; porque por cá é outra conversa). Por essa razão, as operadoras de telecomunicações – e todos os serviços que assentam em cima das suas redes, atrevemo-nos a dizer – terão de partir em busca desse tostão global. Podemos dormir descansados, então. O sonho cumprir-se-á.