"The successor to politics will be propaganda. Propaganda, not in the sense of a message or ideology, but as the impact of the whole technology of the times."
Marshal McLuhan

domingo

TV em tempo real

No meu círculo de convivas não é vulgar falar-se da programação televisiva. A minha proverbial ignorância sobre o assunto impede, a maior parte das vezes, que as conversas tenham seguimento. Mas um destes dias falou-se mesmo de televisão e ouvi coisas surpreendentes. Coisas como «zé maria» ou «acorrentados». Coisas do arco da velha. Antes de mais, gostaria de esclarecer que a televisão não é nenhum anti-Cristo nem me move particular ódio à caixa. A televisão é uma das muitas facetas da Aldeia Global, um dos seus mais importantes ecrãs. Acontece, simplesmente, que a programação televisiva é um produto de gente com gostos e bioritmos que me são completamente estranhos, e de interesses que não me apraz respeitar. Como linguagem, é do mais acéptico possível. Como entretenimento, até o big show é pouco gore. Como estímulo, perto do nada.
Até já ultrapassei o trauma de ouvir em abertura de noticiário radiofónico que o não-sei-quantos deu um pontapé em fulana, por acaso no mesmo dia em que Jorge Sampaio apresentava a sua recandidatura, notícia de pouca monta quando o país estava gelado pelo desenlace dramático do Big Brother.
O que realmente é curioso nisto tudo, não é o facto dos habitantes de Big Brother e os outros que vivem Acorrentados poderem aparecer, a alguns, como o estigma de uma civilização cujo valores se esboroam. Nada disso. A questão de eles terem público não está em causa: têm-no e que lhes faça bom proveito. Wahrol já nos tinha avisado que isto ia acontecer. Há gente capaz de tudo para aparecer. E há gente capaz de tudo para não se levantar do sofá e ir em busca de uma vida. Outros, possuem poucas opções, infelizmente, e só desse modo se explica que voluntariamente abdiquem de umas semanas ou quatro meses de vida. Mas que aborrecimento de vida quando se a pode desperdiçar assim!
E a emoção que está contida no modelo nem sequer é original. Jerry Springer e Oprah, por exemplo, transformaram a vida privada das pessoas num circo de exorcismos. O tipo do big show também se rebola. Mediatizou-se o vulgar, e esse é um dos efeitos da democracia. Adiante.
Curioso é notar que estes programas utilizam uma espécie de audimetria tão democrática quanto em tempo real. Ou seja, este tipo não está a apaixonar a audiência, «sai para lá» e venha o próximo. Há muitos donde este veio. A possibilidade de perceber o comportamento das audiências, é tão preverso quanto sublime. Permite entregar exactamente o produto que o consumidor pretende (não sei se as televisões gostarão desse sistema de medição aplicado com rigor aos blocos publicitários, mas isso é outra conversa).
A audimetria em tempo real poderá traduzir-se, a seu tempo, em televisão em tempo real. Finalmente. A televisão, como meio, sempre foi em tempo real. Os seus conteúdos, porém, estão longe de o ser (com excepção de alguns directos).
No futuro, talvez o árbitro possa distribuir uns quantos cartões amarelos se um jogo de futebol começar a perder audiência. «Corram mais, ou vai tudo para a rua. Dêem espectáculo, que é para isso que vos pagam», dirá. Ou talvez marque uma grande penalidade. Toda a gente gosta de ver uma a ser marcada.
O mundo da política será, no entanto, o maior beneficiado com as técnicas de audimetria em tempo real. Aos discursos e debates de campanha abrem-se novos e inexplorados horizontes. Se uma promessa não colher audiência, facilmente o líder partidário poderá prometer outra coisa qualquer. Poderá mesmo experimentar contradizer-se. Já Cícero dizia que «para os líderes políticos, a persistência numa opinião nunca foi considerada um mérito».
Talvez um dia se rebolem ou se acorrentem. Como efeito secundário preverso, talvez ficássemos todos a ganhar: poderiamos então discernir entre o circo e a verdade.