"The successor to politics will be propaganda. Propaganda, not in the sense of a message or ideology, but as the impact of the whole technology of the times."
Marshal McLuhan

sábado

O 3º Ciclo Virtuoso: Mutação

"Process is more important than outcome. When the outcome drives the process we will only ever go to where we've already been. If process drives outcome we may not know where we're going, but we will know we want to be there"
Bruce Mau, in An Incomplete Manifesto for Growth


Stan Lee legou-nos uma das ideias mais interessantes dos comics: a de que os super-heróis seriam mutantes, um desvio genético do homo sapiens a caminho dum homo superior[1] (na própria terminilogia da Marvel). Os superpoderes deixaram assim de ser o efeito da energia solar sobre um nativo dum sistema de estrela vermelha (Clark Kent) ou de um trágico acidente radioactivo (Peter Parker) para radicarem numa alteração do padrão genético. O Professor Xavier e a sua galeria de X-Men são humanos que nasceram diferentes, qualitativamente diferentes, e hoje, na era da descodificação do genoma humano, esta tese ficcional de há quarenta anos adquire premonição.

No final da década passada a microcultura de South Park, S. Francisco, recuperou a ideia dos mutantes. Carla Sinclair e Mark Frauenfelder afirmavam que a sua fanzine “bOING-bOING” era um motor de mudança para o cérebro de “primatas elevados” [2]. Ao modo dos cereais ou das bebidas espirituosas, a “bOING-bOING” criou um lema processual e pro-activo: Mutating Simian Brains Since 1988.

Alguns anos mais tarde, os mesmos Sinclair e Frauenfelder editaram “The Happy Mutant Handbook”[3], um faça-você-mesmo o upgrade das suas sinapses. Instalava-se assim a ideia de que novos poderes cognitivos poderiam estar a surgir nas gerações vindouras (tal como aconteceu ao Professor Xavier que nasceu com poderes psiónicos paranormais) e que a espécie, ou um grupo de elementos dela, podia ainda mudar em em grandes saltos qualitativos mesmo após cento e cinquenta mil anos de história. Ensinou-nos porém o evolucionismo pós-darwiniano que a mudança não é da exclusiva esfera do código genético, por um lado, nem do ambiente, por outro, antes se origina na retroacção brutal entre estes dois factores. Mas o que provocou estas mutações?

Por momentos imaginem uma casa de final do século passado. Paredes de silêncio com uma ou várias fontes de calor: um fogão, uma lareira. Objectivamente, que diferença existe entre esta casa e a caverna com uma fogueira ao centro de há cento e cinquenta mil anos? Quase nenhuma. A comunicação, a informação que aqui atravessa o éter, é fala, gesto e tacto. Suficiente para o sexo e para nos entendermos mas, indubitavelmente, estreita largura de banda para um aparelho cognitivo com o poder de processamento quase inesgotável do cérebro.

E agora um salto de cem anos: em torno da fonte de calor surgiu um rádio, um telefone, uma televisão, uma playstation, um gameboi, um computador. Fendas enormes no espaço que permitem input e output de quasi infinitos quanta. Informação a rodos. Um autêntico tsunami de bits e pixéis.

Timothy Leary defendia a tese de que o cérebro se viciou em quantas, tal como o corpo se vicia em cafeína ou nicotina. Impactado por uma quantidade até agora desconhecida de informação (não numa feira de atracções qualquer ou em experiências laboratorias, mas na pacata intimidade das nossas prórpias casas) o cérebro exige cada vez mais e mais. E, ao que parece, não tem problemas em digeri-lo.

Em Fevereiro deste ano, em Cannes, tive oportunidade de experimentar a Dreamcast, a nova consola de jogos da Sega. Existiam apenas três ou quatro jogos, mas um houve que me irritou particularmente: uma nova versão de Sonic, o porco-espinho hiperactivo. E irritou-me por isto: não consegui sobreviver mais de trinta segundos, tal a velocidade e a quantidade de informação do ecrã. Apercebi-me com grande clareza que aquele jogo já não havia sido desenhado para o meu cérebro, mas para outro, mais rápido, mais potente ou, simplesmente, diferente. Um cérebro que, provavelmente, já não conflui a sua atenção para um centro do campo de visão, mas que age simbioticamente com a superficie bidimensional do ecrã como um todo. Um cérebro cujos processos cognitivos já não estão tão dependentes do primado da visão e que consegue estabelecer um entendimento táctil e imersivo com os píxeis. John Perry Barlow chama-lhes “os nativos” do Ciberespaço. São os mutantes.

...

“O ecrã é a porta de vidro giratória através da qual o meu cérebro recebe e emite os seus sinais”, escrevia Leary na sua seminal descrição de como se tornou anfíbio. O cérebro passou a consumir biliões de bytes e sentiu-se feliz. Dificilmente porém, poderiamos falar de “altos primatas” se esse cérebro se mantivesse sentado numa redoma de pipocas e cerveja no sofá. O primeiro ecrã foi, apenas, uma janela. “Uma janela para o mundo” (tal como foi definida a televisão) é certo, mas apenas isso: uma visão impotente da paisagem para lá do corpo e do espírito. O ecrã que veio mudar isto tudo e que se tornou o motor irremediavél da mutação, é o ecrã do computador pessoal. Já não é uma janela, mas sim uma porta giratória. Traz e leva de volta.

Poderá parecer reducionista, mas é exactamente essa capacidade que nos fez acreditar e defender, ao longo destes últimos anos em que existe esta página, que os novos cérebros terão a capacidade de transformar a paisagem e a realidade. “Quem controla os nossos ecrãs programa a realidade que habitamos”, disse Leary. Felizmente que serão controlados pelos mutantes...


[1] “Homo superior: A commonly used term for describing all superhumanly powerful mutant human beings as members of a new species. Technically speaking, each superhumanly powerful mutant with a different power or set of powers from the others is probably a member of his or her own subspecies of Homo sapiens (Latin for "thinking man.") However, there is some evidence that all superhumanly powerful mutants have some characteristics in common that normal humanity does not share: for example, these mutants all emit distinctive psionic waves. There is also reason to believe that these mutants are the first wave of a newly evolving superhuman race.” in Marvel Directory (http://www.marveldirectory.com/glossary.htm).

[2] A bOING-bOING usou como lema: “the brain mutator for higher primates”.

[3] Fraudenfelder, M., C. Sinclair e Garreth Branwyn, The Happy Mutant Handbook (Nova Iorque: Riverhead Books, 1995).