"The successor to politics will be propaganda. Propaganda, not in the sense of a message or ideology, but as the impact of the whole technology of the times."
Marshal McLuhan

terça-feira

Já não podes regressar a casa

Em tempo de guerra, a verdade é sempre a primeira vítima
Veran Matic


[parte I]

A semana que passou ficou marcada (ou manchada?) pelos bombardeiros da NATO a despejar morte sobre a Sérvia. Em primeiro lugar, deixem-me contextualizar o conflito: não tenho partido, nem sequer sei exactamente quais as baralhadas políticas que por lá se passam (consequência da minha desintoxicação dos media, suponho). Não conheço os maus e os bons, nem reconheço a uma tragédia desta proporção qualquer sentido de maniqueísmo.
E, de seguida, permitam-me relatar o que me aconteceu: nestes últimos dias tenho lido (email) e ouvido (RealPlayer) vozes de quem se encontra no âmago conflito. Entraram-me pelo computador, pelo ecrã, pela casa, pelo coração adentro. Subitamente, o grito de Tom Peters -- «Distance is Dead! YIKES!» -- assumiu o seu significado total: mais consciente mas também intoleravelmente amargo. O media Internet, como extensão do meu próprio corpo e dos meus sentidos, levou-me directamente ao cenário de guerra: em tempo real, em sentimentos e aflições reais, junto a pessoais reais. Enfim, a realidade sempre a vivemos nós (apesar do que muitos tolos por aí dizem de quem anda pela net, pelo IRC, etc.) mas nunca tão desmediatizada e tão próxima como agora.
...
A história não demora muito a contar: a B92 é uma rádio independente jugoslava que na última edição dos Prémios Europeus da MTV foi galardoada com um prémio especial pelo seu desempenho durante a guerra.
Na madrugada de dia 24, cerca das três da manhã, o editor da B92 - Veran Matic - foi detido nas instalações da própria rádio e levado para interrogatório que se estendeu por oito horas. Dois técnicos do Ministério Federal das Telecomunicações, apoiados por cerca de uma dezena de polícias, confiscaram o transmissor da B92 de acordo com uma ordem emanada do referido minisitério que exigia a cessação imediata das actividades da rádio. A apreensão foi justificada como «temporária» e «preventiva» (de futuras transmissões por parte da estação de rádio).
...
Segundo as autoridades jugoslavas, a B92 teria excedido o nível máximo de desvio permitido (300W) nas suas transmissões. Pouco importa se isto é verdade ou mentira, o que importa é que é... conveniente. Porque a B92 é, e permanecerá, uma rádio independente. Ou perecerá pela violência. Até este momento, porém, resiste com coragem invulgar, num cenário de plena adversidade: as autoridades prepotentes por um lado, os coibóis da Nova Ordem Internacional pelo outro.
...
Mas se a polícia calou o transmissor de rádio, não conseguiu - por falta de competência, muito provavelmente - calar a emissão via Internet. Desde Dezembro de 1996 que a emissão da B92 é captada digitalmente pela BBC Worldservice e retransmitida via satélite. A B92 continua, assim, a transmitir via RealAudio para todo o mundo, largamente excedendo o nível de atenção que as autoridades jugoslavas estão dispostas a tolerar.
(A B92 pode ser escutada a partir do URL http://www.b92.net)
Na própria noite de 24 de Março, uma série de organizações holandesas colocou no ar um website (em http://helpB92.xs4all.nl) destinado a apoiar os media independentes da Sérvia e do Kosovo, difundindo as suas notícias e angariando fundos e equipamento. Em Portugal, notícias e apontadores para estas organizações podem ser encontradas no website da Rádiopirata (em http://radiopirata.terravista.pt).
...
As mensagens de correio electrónico foram, entretanto, chegando: a descrição de como foi gravado o vídeo (também disponível no website da B92) do bombardeamento do aeroporto de Batajnica, as notícias das escolas encerradas, o racionamento de combustível, a flutuação cambial, a evacuação dos judeus para Budapeste, a expulsão de jornalistas oriundos dos países que participam no ataque da Nato, etc. Um email datado das 22.46h de 24 de Março diz apenas isto: «Mobilização geral anunciada há apenas 30 minutos atrás».
«As ruas de Belgrado estão vazias»... «esperamos ataques massivos esta noite»... «caros amigos, as sirenes anunciam novos bombardeamentos... estamos na OpenNet...»
Já não há distância. Já não é possível não escutar as sirenes. Já não é possível voltar a casa.
...
Quando aqui falo - tantas, tantas vezes - da Aldeia Global, costumo adicionar-lhe ainda um outro conceito: «experiência».
Algures, sei que a Aldeia Global é algo que, primeiramente, se sente. São os efeitos e não as palavras, é a mensagem e não o conteúdo, que interessam. A «conversão», como lhe chamava o mestre, não consiste na compreensão dos conceitos, mas em experimentar os seus efeitos.
...
À força de nos mesmerizarmos na escapelização desses conceitos, acabamos por vezes alheados do que em primeira instância nos obrigou a acreditar: esse sentimento profundo de que os outros vivem em nós e nós -- distribuidos, fragmentados e amados - habitamos o todo.
Dito de outra forma, caímos na tentação de enviar os efeitos profundos da Aldeia Global para uma esfera conceitual, onde há lugar às belas palavras, aos sonantes raciocínios e aos clichés da moda, mas pouco ou nada à própria experiência. E não me entendam mal: mea culpa.
As bombas de Belgrado, que explodem nos emails que a Katarina nos envia, devolvem-nos, porém, a experiência. Devolvem-nos o sentido profundo da Aldeia Global.
...
«Os circuitos eléctricos derrubaram o regime do "tempo" e do "espaço" e derramam em nós, continua e instantaneamente, as preocupações de todos os outros homens. Reconstituiram o diálogo numa escala global. A sua mensagem é a Mudança Total, terminando o paroquialismo psíquico, social, económico e político. Os velhos agrupamentos civícos, nacionais e estatais tornaram-se disfuncionais. Nada pode ser tão díspare ao espírito da nova tecnologia quanto "o sítio para tudo e tudo em seu sítio". Já não podes regressar a casa»
("The Medium is the Massage", M. McLuhan e Quentin Fiore, 1967)

...
A televisão deu-nos a guerra em directo. Mas era uma imagem -- «já nada acontece aos homens, tudo acontece às imagens», escreveu Deleuze. Mas enganou-se redondamente. A internet dá-nos (ou devolveu-nos?) a experiência da guerra. Já não é uma imagem. Não é palavra nem conteúdo. É a mensagem. E a mensagem sussura-te: já não podes regressar a casa...


[parte II]

Conforme estipula a Lei de Murphy, quando as coisas parecem não poder piorar mais, elas realmente pioram. E depois o ciclo recomeça.

A rádio B92, de que aqui falámos na semana passada, foi encerrada na sexta-feira, dia 2 de Abril, e o seu director -- Sasa Mirkovic -- «oficialmente» demitido do seu cargo. A entidade que supervisiona a estação nomeou um novo director que, apesar das instalações terem sido encerradas, ordenou aos jornalistas que aparecessem ao trabalho ontem (segunda-feira) de manhã (eu escrevo domingo à noite).
A última mensagem ouvida na B92 foi... «mantenham a esperança».
...
Quando a 24 de Março as autoridades sérvias confiscaram o transmissor da B92 (tal como aqui relatámos) a rádio manteve-se «no ar» através da Internet (RealAudio), satélite (BBC) e onda média. O site da B92 recebeu, em apenas sete dias, quinze milhões de visitas.
Este encerramento não foi, contudo, um acto isolado. A semana que entretanto decorreu foi pródiga --segundo os relatos que nos chegam - em actos de repressão aos media. Uma dezena de re-transmissores das notícias da B92 pertencentes à ANEM-Association of Independent Electronic Media foram igualmente fechados pelas autoridades governamentais, enquanto muitos outros optaram por cessar a sua actividade, já que a única coisa que há hoje para emitir é a propaganda de guerra de Milosevic. No Kosovo, as duas mais importantes rádios alternativas em língua albanesa -- a Koha e a Radio 21 - foram destruídas e o seu pessoal está em fuga.
...
O controlo da tecnologia não é coisa fácil; isso ficou provado pela semana em que a B92 ainda sobreviveu através da Internet . Muito mais fácil é perseguir e atingir directamente o que está «na ponta» da tecnologia e dá sentido aos media: as pessoas, os jornalistas, os resistentes. Os irreflectidos e (até agora) inconsequentes ataques da NATO, e o imediato «estado de guerra», vieram dar a Milosevic os meios e a força para exterminar os media independentes da Jugoslávia. E, da caminho, os focos libertários.
...
Veran Matic, o editor da B92 que foi preso e interrogado na semana passada, expõe a situação de um modo só possível a quem está por dentro dela. Ideias simples como: «cada míssil que atinge o solo exacerba o desastre humanitário que a própria NATO supostamente devia prevenir» ou «com as bombas a cair por todo o lado, ninguém os consegue persuadir (aos sérvios) que isto é apenas um ataque ao seu governo e não ao seu país». Chegou o momento da propaganda e da lavagem ao cérebro. Tal como a nós o fazem coronéis e generais estrelados, tentando explicar-nos o inexplicável e justificar com seráfica calma o imenso desastre das suas acções.
...
Nas palavras de Zoran Zivkovic, o autarca oposicionista de Nis, lê-se o desespero e a desorientação de um povo: «Há vinte minutos atrás a minha cidade foi bombardeada. As pessoas que aqui vivem são as mesmas pessoas que votaram pela democracia em 1996, as mesmas pessoas que protestaram durante cem dias após as autoridades tentarem negar-lhes a vitória nas eleições. Eles votaram pela mesma democracia que existe na Europa e nos estados Unidos. Hoje a minha cidade foi bombardeada pelos estados democráticos dos EUA, Reino Unido, França, Alemanha e Canadá! Faz algum sentido isto?». Não, não faz. Porque ninguém bombardeia a Turquia para salvar os curdos ou a Indonésia para reagatar os mauberes. Não é assim que se faz a guerra, mesmo se ela fosse inevitável.
...
Os sérvios democratas sentem-se traídos, afirma Veran Matic. Um dos reflexos imediatos dos bombardeamentos é a supressão dos agentes da democracia e da liberdade de expressão dentro da própria Jugoslávia - quer pela perseguição governamental, quer fruto da mobilização geral. Democracia e liberdade que são (ou seriam) um inimigo para Milosevic muito mais efcaz que os exércitos da NATO e, sobretudo, mais legítimo. Com um futuro pela frente. Com um plano e uma ideia para depois das bombas. Um exemplo paradigmático do que se está a passar é este: a introdução da «corte marcial» e até (fala-se) da re-introdução da pena de morte.
«As bombas da NATO rebentaram com as sementes de democracia que germinavam no solo do Kosovo, da Sérvia e do Montenegro e garantiram que elas não brotarão novamente por muito tempo», diz Matic.
...
Nestas alturas, não há meios melhores que os outros. Há, claro, os discursos do poder condensados em imagens televisivas de Dejá Vu. Os campos, os refugiados, a fome, a dor. Iguais em todo o lado, independentemente da cor da pele e da paisagem. Imagens atrozes, sempre iguais, que vão servindo para a voz-off da ocasião e para a legitimação dos discursos inextricáveis do poder. Podiam ter sempre a mesmavideocassete à mão de semear: quem viu um rosto de dor não viu todos os rostos de dor? Ou dito de outra forma: como podemos nós identificar esses rostos de dor? Não o fazemos, ouvimos apenas as vozes, por detrás das imagens, lavando-nos os lóbulos. Lixívia para o cérebro, Chomsky tem razao, Leary tinha razão.
...
«O público internacional precisa de saber a verdade sobre o que está aqui a acontecer. Mas num espaço sem informação rigorosa, tudo o que podemos ouvir é a propaganda da guerra - a retórica do Ocidente inclusa. Claro, em tempo de guerra, a primeira vítima é a verdade».
...