"The successor to politics will be propaganda. Propaganda, not in the sense of a message or ideology, but as the impact of the whole technology of the times."
Marshal McLuhan

domingo

A síndrome Titanic

No início, o Universo foi criado. Isto enfureceu muita gente e tem sido geralmente encarado como uma má ideia
Douglas Adams, “The Restaurant at the End of the Universe”


A expressão que descaradamente roubo para titular a crónica deste mês pertence a Cees J. Hamelink, da Universidade de Amsterdão, que recentemente esteve entre nós para participar no Colóquio Info-Ética 2002 (no ISCTE).
O professor Hamelink demostrou ser, para dizer o minímo, um pensador singular. Como solução para o elevado número de sinistros automóveis na Holanda (o problema não é exclusivamente português) propõe… automóveis sem travões!
Porque, acredita, é a excessiva segurança dos automóveis, o seu aperfeiçoado grau tecnológico actual, que provoca os acidentes. Ou melhor, o excesso de confiança que o homem deposita na tecnologia. Também Virilio já nos tinha avisado sobre o “acidente” que a tecnologia em si transporta como mensagem: “inventar o navio é inventar o naufrágio, inventar o avião é inventar a explosão, inventar a electricidade é inventar a electrocução”.
Vivemos, realmente, em plena tecnocultura, em que uma fé imensa na perfeição da tecnologia nos fez esquecer de levar botes salva-vidas. É isso a Síndroma Titanic. E esta é, infelizmente, uma parábola dolorosamente rigorosa.
Mas mais interessante ainda é a ideia da tecnocultura de que o homem está na origem de todos os problemas. Se a tecnologia é perfeita, então a falha será humana. São os homens que estragam, que corrompem, que introduzem o erro. Deus ex machina, contudo, não salvou os náufragos do Titanic – isso sabemos nós.
Tal como os deuses pendurados em frágeis cordéis sobre o palco, também nós pairamos sobre abismos e não há quem nos acuda quando a ilusão é perfeita. Temos os pés assentes numa teia invisível e inescrutável de impulsos eléctricos e, no entanto, pensamos pisar terra firme.
A consequência inadmissível de se acreditar tanto nas falhas do homem em oposição a uma “pureza” da tecnologia, é que esta nos chega com imenso controlo. O perfeito monitoriza e vigia o imperfeito, pois é assim de seu direito. A legitimação da tecnologia como instrumento de controlo deriva, também, da sua ascese, que a coloca fora dos limites da moral ou acima dela. A austeridade ideológica, contudo, não existe, nem mesmo em máquinas não pensantes. Nisso acredito eu, firmemente.
Régis Debray, há alguns anos atrás, acusou McLuhan de ter sobrevalorizado “a tecnologia por detrás da mudança cultural”, como se os códigos e as mensagens pudessem ter uma existência autónoma. Não têm. As invenções libertaram o homem – para ser mais rigoroso: libertaram também a mulher – mas essa liberdade, como na parábola do paraíso perdido, não deixa de ter o seu preço. Não pretendo um mundo de gente nua e feliz a comer fruta das árvores; menos ainda um mundo de culpas por termos mastigado a maçã. Mas McLuhan tinha razão: temos de saber ver o que a tecnologia nos faz e faz por nós. Não há paciência para entidades perfeitas que nos tratam como crianças irresponsáveis. A menos que o sejamos…