"The successor to politics will be propaganda. Propaganda, not in the sense of a message or ideology, but as the impact of the whole technology of the times."
Marshal McLuhan

domingo

Iluminações

Aquilo que temos como absoluto -- não fazer piqueniques na linha do comboio, não usar a ponte Vasco da Gama como prancha de saltos, não colocar a cabeça no micro-ondas -- é relativizado com simplicidade assombrosa pelas novas tecnologias ao serviço das representações da realidade. Excesso de mass-media, excesso de jogos, excesso de efeitos especiais, excesso de imagens. Já Platão falava de um mundo de sombras.
O mundo em que vivemos perdeu, irremediavelmente, o seu paradigma analógico. Já nada é o que é. Tudo é a mesma coisa e essa coisa serve para codificar e representar tudo o que é necessário para manter a matriz da realidade. Por detrás do estado sólido das coisas, está informação digital, vibrante e luminosa. Energia, informação, zero e uns.
Essa matriz digital está longe de ser inacessível. De Buda a William James, de Picasso a Jean-Arthur Rimbaud, passando por um longo rol de profetas, beatos, gurus e xamãs, a matriz tem sido hackada ao longo de seis mil anos. Transes e iluminações, naturais ou induzidos, têm permitido o acesso directo ao código com que está escrito o programa do universo. Sintaxe e semiótica dirão os mais cépticos, já que cada época produz os paradigmas de linguagem com que se explica o óbvio inexplicável. Talvez. Porém… parecemos estar cada vez mais perto da verdade, não é?
Esta é a metáfora: tudo no universo são quantas. Luz e energia. Ondas e partículas são estados diferentes da mesma coisa. A matéria é energia «congelada», vibrando a uma velocidade inferior. O sema é único. Falta saber -- ficará sempre por saber? -- o quê ou quem é a «cola». O que dá sentido e o que torna o sema uma coisa agora ou outra um pouco mais tarde. Para gozo de quem decorre o maravilhoso espectáculo da entropia? De Deus? Do homem? Qual dos dois é a matriz? Quem colocou o programa a correr?
Cristo acedia directamente ao código e operava milagres. Foi o maior dos hackers da História. E eu lembro-me sempre de «Matrix» e pensar se não estamos a tentar -- desesperadamente -- criar uma nova religião. Se não estaremos a substituir a ideia de Deus antropomorfo e analógico com a ideia de Deus quanta e digital. Deus é a primeira ideia de uma inteligência artificial. Sejamos claros: nisto, a Matriz não é inédita.
Esta nova cosmologia nasce na alvorada do século com Theillard de Chardin (católico) que defendia três fases no processo evolutivo: biosfera (o planeta Terra); o pensamento inteligente (o seu aparecimento); a noosfera (séc. XX, a partir do telégrafo, telefone, rádio, etc.).
A noosfera, escreveu Theillard de Chardin, «resulta da acção combinada de duas curvas, a esfericidade da Terra e a convergência cósmica do espírito». Há setenta anos atrás, era assim que o paleontólogo jesuíta definia o seu ideal: «uma membrana pensante cobrindo o planeta, como um globo vestindo-se a si mesmo de um cérebro».
«Com o ciberespaço», diz John Perry Barlow, «estamos em vias de criar uma consciência colectiva». Ou pelas palavras sempre iluminadas do mestre McLhuan (católico): «Graças à descoberta da vaga electromagnética e das suas formidáveis influências biológicas, cada indivíduo se encontra, pela força das coisas (activa ou passivamente) presente, em simultâneo, nos quatro cantos da Terra». Phillipe Quéau estende o conceito para integrar a Internet, ainda não inventada ao tempo dos profetas católicos: «a Noosfera é um conceito espiritual enquanto o metamundo se inscreve no mundo real, quase social. Podemos escalar as diferenças sobre uma série de quatro níveis: a Net será a rede fisíca; a Web a rede semântica (ou seja, o conjunto das páginas de informação, os conteúdos propriamente ditos); o metamundo a rede socio-económica, situada acima da Internet ou do conjunto das redes. Finalmente, a Noosfera sobrevoará espiritualmente tudo isto».
Convenientemente, o dom da ubiquidade, omnipresença, é característica divina. Estamos, agora, em todo o lado ao mesmo tempo. Em comunhão com a Noosfera ou a Matriz. Parece-me mesmo uma nova religião. A sério. A diferença é apenas esta: não foi Deus que criou o Homem à sua imagem e semelhança. Fomos nós que acabámos de criar Deus.