Saudades do futuro
Só tenho saudades do futuro
José Gomes Ferreira
Uma das facetas mais marcantes da nossa cultura -- entendendo por cultura o sistema operativo por cima do qual corre a identidade colectiva e as suas mais profundas aspirações -- é, indubitavelmente, a "saudade", esse mantra lírico e esotérico aplicado sempre que precisamos de explicar aos "outros" porque somos diferentes deles. Como premissa, a saudade coloca-nos numa zona de emoção exclusiva, que não é compatível nem pode ser partilhada. Nascemos na língua -- outra palavra para sistema operativo: a minha pátria é a minha língua -- e isso distancia-nos de todos os outros.
Dando de barato a banalização e o excesso de uso, acredito contudo que a saudade realmente nos habita o modo de ser e nos condiciona os comportamentos e processos de comunicação. Os ingleses dizem "homesick" (literalmente: doente+casa) quando sentem no sangue a ausência do lar, da família ou mesmo da pátria. Ao contrário, a "saudade" tem menos a ver com aquilo de que se sente a falta -- o lar, a família ou a pátria -- do que com a improbabilidade de encontrar aquilo que se deseja. É a ansiedade provocada pela insatisfação. Escreveu Pessoa, um dia, que falta cumprir-se Portugal. Também nós estamos por cumprir. Isso é a saudade.
Quando José Gomes Ferreira disse só ter "saudades do futuro", estava a ser ironicamente paradoxal, já que ambas as premissas significam a mesma coisa: a saudade não refere o passado ou a coisa adquirida; a saudade lamenta a ausência do que nunca se teve e, muito provavelmente, nunca se terá. Em suma, Porque eu só estou bem, aonde eu nao estou; Porque eu só quero ir, aonde eu nao vou, dizia-nos António Variações na sua seminal canção "Estou Além".
Mas, sob pena de repetirmos algumas das noções aqui abordadas mês após mês, que espaço habita a saudade num mundo subitamente holístico (o Ciberespaço ou a Aldeia Global) e por que futuro se espera quando o tempo é simultâneo? Será a nossa cultura compatível com o novo sistema operativo que rege a humanidade ou iremos perder-nos como portugueses?
A saudade é coisa que se começa a acumular algum tempo antes da partida, vai crescendo na distância, e torna-se insuportável no regresso. Mas ora que chegados à Aldeia Global, com os nossos sentidos electronicamente expandidos, a cada momento contactando o todo, tomamos consciência que a telepresença destrói a ausência e a virtualidade substitui o vazio. A comunicação tornou-se possível a todas as horas e substituiu o silêncio.
Chocou-me pensar nisto tudo um destes dias em que, antes de fazer as malas, telefonei a despedir-me de uma pessoa querida que vive no Porto (eu vivo em Lisboa, quando não estou no Ciberespaço). Quase todos os dias, à semelhança do que faço com tantos outros amigos espalhados por esse país fora, converso com ela no talker, no ICQ ou no IRC. E o que me surpreendeu foi isto: objectivamente, não iriamos ficar mais distantes só porque me ia deslocar a um outro país qualquer. Em tempos, Nicholas Negroponte salientou que de Nova Iorque a Newark ou de Nova Iorque a Londres existe uma diferença apenas de cinco segundos… via satélite. À velocidade da luz, a comunicação entre Lisboa e Porto não é muito mais rápida que entre dois pontos quaisquer do planeta. A ausência já é coisa impossível de viver, quando nos aeroportos e nas artérias principais das cidades (quase, mas lá chegaremos) existem computadores com uma ligação à Internet. E, no entanto, continuo a ter saudades. De quê? Só pode mesmo ser do futuro.
José Gomes Ferreira
Uma das facetas mais marcantes da nossa cultura -- entendendo por cultura o sistema operativo por cima do qual corre a identidade colectiva e as suas mais profundas aspirações -- é, indubitavelmente, a "saudade", esse mantra lírico e esotérico aplicado sempre que precisamos de explicar aos "outros" porque somos diferentes deles. Como premissa, a saudade coloca-nos numa zona de emoção exclusiva, que não é compatível nem pode ser partilhada. Nascemos na língua -- outra palavra para sistema operativo: a minha pátria é a minha língua -- e isso distancia-nos de todos os outros.
Dando de barato a banalização e o excesso de uso, acredito contudo que a saudade realmente nos habita o modo de ser e nos condiciona os comportamentos e processos de comunicação. Os ingleses dizem "homesick" (literalmente: doente+casa) quando sentem no sangue a ausência do lar, da família ou mesmo da pátria. Ao contrário, a "saudade" tem menos a ver com aquilo de que se sente a falta -- o lar, a família ou a pátria -- do que com a improbabilidade de encontrar aquilo que se deseja. É a ansiedade provocada pela insatisfação. Escreveu Pessoa, um dia, que falta cumprir-se Portugal. Também nós estamos por cumprir. Isso é a saudade.
Quando José Gomes Ferreira disse só ter "saudades do futuro", estava a ser ironicamente paradoxal, já que ambas as premissas significam a mesma coisa: a saudade não refere o passado ou a coisa adquirida; a saudade lamenta a ausência do que nunca se teve e, muito provavelmente, nunca se terá. Em suma, Porque eu só estou bem, aonde eu nao estou; Porque eu só quero ir, aonde eu nao vou, dizia-nos António Variações na sua seminal canção "Estou Além".
Mas, sob pena de repetirmos algumas das noções aqui abordadas mês após mês, que espaço habita a saudade num mundo subitamente holístico (o Ciberespaço ou a Aldeia Global) e por que futuro se espera quando o tempo é simultâneo? Será a nossa cultura compatível com o novo sistema operativo que rege a humanidade ou iremos perder-nos como portugueses?
A saudade é coisa que se começa a acumular algum tempo antes da partida, vai crescendo na distância, e torna-se insuportável no regresso. Mas ora que chegados à Aldeia Global, com os nossos sentidos electronicamente expandidos, a cada momento contactando o todo, tomamos consciência que a telepresença destrói a ausência e a virtualidade substitui o vazio. A comunicação tornou-se possível a todas as horas e substituiu o silêncio.
Chocou-me pensar nisto tudo um destes dias em que, antes de fazer as malas, telefonei a despedir-me de uma pessoa querida que vive no Porto (eu vivo em Lisboa, quando não estou no Ciberespaço). Quase todos os dias, à semelhança do que faço com tantos outros amigos espalhados por esse país fora, converso com ela no talker, no ICQ ou no IRC. E o que me surpreendeu foi isto: objectivamente, não iriamos ficar mais distantes só porque me ia deslocar a um outro país qualquer. Em tempos, Nicholas Negroponte salientou que de Nova Iorque a Newark ou de Nova Iorque a Londres existe uma diferença apenas de cinco segundos… via satélite. À velocidade da luz, a comunicação entre Lisboa e Porto não é muito mais rápida que entre dois pontos quaisquer do planeta. A ausência já é coisa impossível de viver, quando nos aeroportos e nas artérias principais das cidades (quase, mas lá chegaremos) existem computadores com uma ligação à Internet. E, no entanto, continuo a ter saudades. De quê? Só pode mesmo ser do futuro.
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