"The successor to politics will be propaganda. Propaganda, not in the sense of a message or ideology, but as the impact of the whole technology of the times."
Marshal McLuhan

domingo

O milénio de Calvino

Este é o meu terceiro Agosto em vossa companhia. Talvez porque uma das imagens literárias mais fortes da minha memória seja “O Estranho”, de Camus, outorgo-me o direito de tudo permitir por causa do Sol. Há dois anos falámos de Pessoa. O ano passado, de Borges. Faltava, seguramente, Calvino.
E é este o tempo certo, já que foi para este milénio que ele nos deixou seis simples conceitos (em «Six Memos for The Next Millennium», as conferências que escreveu para a Universidade de Harvard e que não viveu o suficiente para as realizar): Leveza, Rapidez, Exactidão, Visibilidade, Multiplicidade e Consistência.
Seis conceitos para a literatura, porém de impacto mais vasto, porque o contexto da literatura não se fecha num invólucro, antes extravaza das, e pelas, ideias da época. Em certos casos, a verosimilhança dessas ideias aplicadas a outras febres de uma sociedade em grande transformação, não cessa de nos surpreender. É o caso quando Calvino afirma na Rapidez que «numa época em que triunfam outros media rapidíssimos e de raio de acção extremamente amplo, arriscando-se a reduzir toda a comunicação a uma crosta uniforme e homogénea, a função da literatura é a comunicação entre o que é diferente pelo facto de ser diferente, não embotando mas sim exaltando essa diferença, de acordo com a vocação própria da linguagem escrita». É óbvio que a escrita, na maioria das vezes acto individual, livre (ou antítese) dos poderes económicos e políticos, assume a face mais visível da resistência. Nem mesmo as novíssimas artes multimedia e interactivas, prisioneiras do projecto tecnológico, conseguem assumir a vanguarda dessa resistência ao vulgar.
Algo cuja vocação Calvino definiu definiu como Leveza: «Nas alturas em que o reino do humano me parece mais condenado ao peso, penso que como Perseu deveria voar para outro espaço (…) Quero dizer que tenho de mudar o meu ponto de vista, tenho que observar o mundo a partir de outra óptica, outra lógica, e outros métodos de conhecimento e de análise». Mudar de ponto de vista ou mudar simplesmente; compatibilizar o múltiplo e o oposto; liberdade e tolerância: uma atitude para este -- já não o próximo -- milénio.
A Leveza que Calvino advoga -- e que em certa altura diz ser nexo entre a levitação desejada e a privação sofrida -- prende-se com a nossa capacidade de deixar para trás -- abandonados nas nossas vidas ou no milénio que se esgota -- os pesos mortos. Talvez os automóveis e os motores de combustão. Talvez a ideia do atómo e a mecânica newtoniana. Talvez as coisas que ontem acabámos de baptizar como “Novas”: a Nova Economia, a Nova Política. Que interessa? Essa será uma decisão pessoal, um electrão que decide fugir à gravidade. E na somatória dessas decisões, entrever-se-á os novos sistemas e modelos.
Calvino percebeu que a Exactidão se perdeu na Aldeia Global. Um daqueles efeitos secundários tão inesperado (?) como mal desejado. «Às vezes parece-me que uma epidemia pestífera atingiu a humanidade na faculdade que mais a caracteriza, ou seja, o uso da palavra, uma peste da linguagem que se manifesta como perda de força cognitiva e de imediatismo, como um automatismo com a tendência para nivelar a expressão nas fórmulas mais genéricas, anónimas e abstractas, para diluir os significados, para embotar os pontos expressivos, para apagar toda a centelha que crepite do encontro das palavras com novas circunstâncias».
Retenham-se: «as novas circunstâncias». Lembremo-nos: a forma banal como os novos fenómenos sociais e comunicacionais são transcritos, uma falha de descrição que não encontra as palavras que expressem com exactidão as novas tribos, as novas micro-culturas e, surpreendentemente, até a nova ordem do mundo. Mas o problema não é só um problema de palavras. Ou é, exactamente, de palavras?