"The successor to politics will be propaganda. Propaganda, not in the sense of a message or ideology, but as the impact of the whole technology of the times."
Marshal McLuhan

domingo

Quente e frio

No séc. XIX, o homem “descobriu” o mundo macroscópico, os grandes sistemas: as redes ferroviárias intercontinentais, as galáxias e, até, a sua própria História (que afinal começara mais de cem mil anos antes dos impérios da Babilónia e da da Antiguidade helénica). Isto fez com que ele se deslocasse do centro de todas as coisas e, em consequência e à sua imagem, anunciou-se a morte de Deus.
No séc. XX, o homem fez o movimento inverso: do macrocosmos para o mundo microscópico. Os grandes símbolos da época – o átomo, a célula, o ADN, os quarks e os quanta – são símbolos que ficam para além do olhar: invisíveis. O nosso mundo passou a ser povoado por traços fantasmagóricos; o seu funcionamento tornou-se explicável por coisas que não conseguimos ver.
O cruzamento do macro e do micro, da ideia de um universo sem fim e da tecnologia miniturizada, desembocou na aventura espacial dos anos cinquenta e sessenta (a conclusão é tirada à pressa, mas julgo que dispensa explicações). Esse foi um dos bons efeitos secundários do conhecimento (evitemos chamar-lhe ciência, por agora). Mas, como bem se sabe, esse conhecimento inventou também a guerra atómica e a info-guerra; e isso é um efeito de consequências aterradoras.
Após o positivismo e o materialismo, entrámos numa nova época em que de novo é preciso ter fé. Fé para acreditar nas tais coisas que não vemos como essência da vida e argamassa do universo. George Gilder chegou mesmo a especular que os quanta, aquilo que dá consistência a tudo o que existe, sendo luz pura nada mais são que a própria essência divina. Mas a fé, por emoção que é, não deixa de ter os seus aspectos irracionais. E um deles é a forma ingénua e acrítica como aceitámos e aceitamos o progresso, a ciência e a tecnologia.
Parece-me indiscutível que o tempo actual é fortemente caracterizado por uma súbita deslocação da tecnologia: desde a periferia para o epicentro da vida humana. A “nova” tecnologia – a alta tecnologia, as tecnologias da comunicação e os media – afectam a um nível profundo a expressão, a percepção e o pensamento humanos, com os consequentes impactos na vida social, política e económica. A Nova Economia nasceu desligada das novas ideias económica – à volta de uma coisa chamada bolsa de capitais que de novo não tem nada -- e ruiu com estrondo. O discurso político, esse, assume que o futuro é uma coisa que deriva do despejo de novas tecnologias para cima de tudo, privado e público, e “está a andar”. A Nova Política não parece muito diferente do NASDAQ e, como todas as bolhas, corre o risco de rebentar com um sopro de ar e sem deixar memória.
Não queremos com isto dizer que a tecnologia, nova ou velha, seja boa ou má. O programa indecifrável da tecnologia diz que ela tem de ser boa para si mesmo e nada mais. O resto está para além de considerações moralistas: fala-se hoje muito de qualidade, e usa-se comunemente o termo “qualidade” como sinónimo de virtude e antónimo de defeito. No entanto, qualidade refere-se apenas a uma condição. Frio ou quente são qualidades, não defeitos nem virtudes.
A água, quando quente, é óptima para fazer chá e péssima para ser bebida no deserto, tal como fria não serve para chá (mesmo que o coloquem numa lata de alumínio colorido com excesso de açucar).
É o contexto aquilo que valoriza a qualidade. A Física nuclear não é boa quando vai à Lua e má quando fabrica bombas. É sempre a mesma Física. Claro que a água insalubre, tanto lhe faz estar quente ou fria; mas a tecnologia, que fique bem claro, não é insalubre (pelo menos enquanto não se tornar mais orgânica). Não pode é ser sempre a mesma em todo o tipo de situações, não se pode pagar toda ao mesmo preço, não serve da mesma maneira a todas as pessoas indiscriminadamente. Para repegar na metáfora inicial, os processos das novas tecnologias são, tal como as matérias actuais da ciência, invisíveis ao olhar. E por isso mesmo exigem de nós algo mais que fé cega: exigem um compromisso ético que teimamos em não assumir. Mesmo com todas as provas da História.